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Crônica

NASCIMENTO

 

É domingo. A luz do sol entra pelas frestas da janela do camarim. O barulho dos carros é a única coisa que me liga ao mundo lá fora. Parado, observo a uma distância segura, mas ainda modesta, a moça de cabelos azuis sentada em frente ao espelho emoldurado com luzes incandescentes. Ela se encara com um olhar feroz, as mãos cheias de garras passando pelos fios do topo da cabeça até as pontas. No corpo, veste-se como quem não tem medo de nada e enxerga na vida mais que preto e branco. Maiô e Tulê colorido. Boca rosa; salto 15.

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Uma sensação estranha percorre meu corpo. O sangue que corre em minhas veias parece quente enquanto vejo de longe as bochechas coradas da mulher de salto agulha. Os pelos dos meus braços se arrepiam sem que vento nenhum toque minha pele. Por algum motivo, me intrigo com o lamber de seus lábios e me embriago com seu cheiro. Fecho os olhos e me pergunto se bebi. Não me lembro de como fui parar ali.  

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Consciente da presença da mulher colorida continuo de olhos fechados e desejo, mesmo que por um segundo, ter sua coragem. Não me esconder. Dar a cara a tapa. Soltar a fera.  Olhar nos olhos! Dizer o que penso! Me deixar ser visto! Me permitir! Me vejo; mas não me encontro. Me toco; mas não me sinto. Quem dera ser a moça do cabelo azul!

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Aos poucos abro meus olhos com pesar - pela obrigação de viver; não por já ter vivido – e me deparo frente a frente com a até então distante, mulher feroz. Linda.

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Com uma expressão forte – e contrastante com a roupa neon – seus olhos pretos miúdos me encaram. Suas mãos se mexem nervosas ao lado do corpo. Seus pés entram e saem do sapato. As sobrancelhas envergam. Os grandes cílios piscam. A boca treme.

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A intensidade do momento pela primeira vez não me sufoca e a timidez não desvia o meu olhar. Minha garganta dói por anos de palavras não ditas.

...

É domingo. A luz do sol entra pelas frestas da janela do camarim. O barulho dos carros é a única coisa que me liga ao mundo lá fora. Parado, percebo: ali, nasci!

Esta crônica foi baseada na história de Lunna Black e seus sentimentos de quando se montou pela primeira vez. 

Feita através de livre interpretação.

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